quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Um ano para a oposição mostrar seu valor (Marco Aurélio Nogueira)

Depois da derrocada política, ideológica e eleitoral da esquerda democrática, do centro e da esquerda petista, os perdedores terminam 2018 amargando os efeitos de sua desarticulação. Procuram juntar os cacos. O vendaval bolsonarista abalou cálculos e personagens da democracia brasileira. Abriu uma espécie de caminho de volta.
Passadas as festas de fim de ano, terá de haver muita reflexão e ação.
PSB, PDT e PCdoB movimentam-se para organizar um arranjo político que funcione como bloco no Congresso e sirva de plataforma para deslocar o centro gravitacional das esquerdas, afastando-as tanto quanto possível do PT. Os petistas, por sua vez, terão de deixar de girar em círculos, abandonando a narrativa do golpe e da perseguição.
Ao mesmo tempo, o PPS e a Rede abriram conversas para examinar a possibilidade de uma articulação que abrigue os desejos de renovação de ambas as correntes políticas, juntamente com movimentos cívicos surgidos nos últimos anos.
Por entre esses dois mundos flutuam políticos e ativistas originários do PSDB, do MDB, gente da esquerda pragmática, petistas realistas, tucanos incomodados com a guinada direitista do partido, pessoas sem vínculos partidários – todos preocupados em encontrar uma porta por onde passe uma agregação que cumpra funções de ordem prática e ideal.
Haverá quem trabalhe para que as três iniciativas acima mencionadas, ou ao menos duas delas, convirjam no médio prazo em direção a um ponto comum. E haverá quem pense que nenhuma delas tornará viável uma oposição propositiva, consistente e vigorosa ao próximo governo federal.
No fundo, estão todos convencidos de que os partidos existentes já não dão conta da situação e precisarão agir de outra maneira, quem sabe, extraindo de seu interior os germes da própria superação, rumo à formação de um novo movimento político.
Estão aí as dificuldades. Alguns falam em fortalecer o que tem sido chamado de “centro radical”, outros cogitam de um “centro” sem adjetivações adicionais, há quem pense em termos de “centro-esquerda” e outros, por fim, acreditam que não se deveria trabalhar com a ideia de “centro”, imprecisa demais, mas de social-democracia.
Os nomes importam. Se se quiser ter um novo posicionamento das forças democráticas brasileiras, a ideia de “centro” é preciosa, mas precisa ser adequadamente processada, qualificada com rigor. Sem isso dificilmente exibirá face rejuvenescida e não conseguirá desvencilhar-se do que já se tentou fazer no passado, sem grande sucesso. Sem isso terá reduzido poder de sedução, enfraquecendo-se perante a opinião pública e a esquerda democrática, que tem peso próprio não desprezível em termos de concepções políticas e valores.
Um “centro radical” é uma proposição engenhosa, no sentido atribuído à expressão pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas carece de formatação. Poderia ser mal interpretada como opção por um posicionamento “radicalmente de centro”, isto é, algo que não é nem esquerda nem direita: um muro não muito largo onde só haveria lugar para políticos pouco atentos à questão social e aos direitos humanos, concentrados na reforma da economia e do Estado em sentido fiscalista e gerencial, mais dedicados a futuros embates eleitorais e parlamentares do que ao diálogo com a sociedade.
Não seria um “centrão”, mas sua identidade ficaria ofuscada, inviabilizando-se para dialogar com as multidões e, acima de tudo, com as novas gerações, que não querem mais do mesmo. Não é o que pensa FHC, mas o risco de a ideia se perder nas nuvens é real.
Qualquer “centro” que queira cumprir uma função positiva no Brasil atual terá de infletir para a esquerda. Não em termos ideológicos, mas em termos programáticos, valorativos. Terá de se distanciar da esquerda anacrônica, aprisionada ao século 20, e abraçar uma esquerda que saiba decifrar o século 21 e ativar os valores da democracia, da liberdade, da igualdade, da justiça. Precisa ser mais progressista que reformista, voltar-se mais para o social que para o econômico, atacar com determinação a desigualdade, ser capaz de temperar seu moderantismo com boas doses de generosidade social e combatividade democrática.
Chamá-lo de “centro” não ajuda muito. Antes de tudo, porque carrega um pecado de origem, o da imprecisão.
Não se trata de um problema nominalista. Em política estamos sempre à procura de selos que identifiquem e, ao identificarem, auxiliem a produzir apoios e adesões. A política democrática é uma arte dedicada a unir, mas também a distinguir e diferenciar: somente se unem partes que têm clareza do que são e aceitam a dosagem de seus interesses particulares em nome de um interesse comum.
Para enfrentar o furacão direitista que sacudirá o País nos próximos anos e que, à primeira vista, fará isso conforme as regras do jogo, necessitamos de um polo democrático progressista o suficiente articulado para se abrir à direita liberal e à esquerda democrática, a reformistas moderados e a socialistas, a liberais, verdes e sustentabilistas. Um polo que entre firme no século 21, abandone dogmas e roteiros já experimentados, disponha-se a elaborar uma nova teoria da sociedade nacional e a enfrentar com determinação os graves problemas do País.
Requerem-se iniciativas que sejam claramente democráticas, abertas, laicas, flexíveis, com capacidade de expansão e de negociação, que reverberem no Parlamento e nos ambientes da sociedade civil, compondo o que há de vida ativa no Brasil atual sem concessões desnecessárias à direita, à esquerda e ao centro. Nada disso é obra de curto prazo.
Que 2019 represente, para os democratas, a abertura de uma fase nova, na qual se compreendam as carências acumuladas, os erros cometidos e se prepare o terreno para o amadurecimento de uma oposição política que traga consigo o futuro.
O Estado de São Paulo/ 22 de dezembro de 2018

A esquerda que não sabe quem é (Eliane Brum)

Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito?
A violência dos últimos anos, que culminou nas eleições de 2018, tampou os ouvidos para o que poderia ser considerado o outro lado. Os gritos acusavam a impossibilidade de votar em Jair Bolsonaro (PSL) depois de ouvir o discurso de ódio que ele pregava. Gritou-se até quase acabar a voz. O fato é que a maioria dos eleitores que escolheu um dos candidatos escolheu Bolsonaro, e ele está eleito e já começou a governar desde o dia seguinte ao segundo turno, embora só assuma oficialmente em janeiro. Desde então, ou mesmo muito antes disso, os grupos que se opõem a Bolsonaro se limitam a reagir. A cada declaração, a cada ministro, a cada indício de corrupção amontoam-se mais gritos. É necessário reagir. Mas só reagir é exaustivo. Como o espaço público está saturado de gritos, a reação se esgota em si mesma. Numa época em que se vive de espasmo em espasmo, cada vez mais rápidos, o que parece movimento com frequência é paralisia. A paralisia do tempo da velocidade cria a ilusão de movimento exatamente porque é feita de espasmos. Como parar de apenas reagir e se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
• Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela.
Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.
• Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as contradições do PT no poder
A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou.
O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo.
O que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia.
Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.
Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista.
• O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora
A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.
Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.
É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e todos sabem qual é a vida que estão vivendo.
A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.
Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?
• Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto para o país
A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.
No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os manifestantes, muitos deles estudantes, “walk for life”. Esta é possivelmente a interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à estratégia dos apoiadores do regime de opressão.
Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada, finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus heróis e suas revoluções.
As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.
• Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada
Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.
Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos, defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição. Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.
Em artigo no The Intercept, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a greve dos caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”, na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:
“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas redes sociais. Os protestos ocorrem mais como riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem, muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito de ‘basta”.
Ao voltar a entrevistar os jovens que participaram dos “rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.
• Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder
Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.
Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem mesmo aquilo que não é?
No caso dos “coletes amarelos”, na França, há um ponto que também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se sabe, o presidente francês, Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico” sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar. A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas medidas urgentes.
O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até 2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5 graus Celsius.
O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir o déficit orçamentário da França, pagando credores ricos. Na prática, o “imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.
Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.
• A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade
Cito o caso francês não só porque está se desenrolando nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda, principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos. Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos, Estados Unidos na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta. Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais pobres. É o que já está acontecendo.
Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em massa da América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata. Ao serem entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram, causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.
Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.
Quando Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.
Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT, nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma “esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.
Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e causador de desigualdades.
Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os grandes produtores de combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer análise do momento atual.
• Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta que viverão. São adolescentes como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por ela.
Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem a maior porção da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais biodiverso do mundo.
Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm barquinhos de papel.
(*) Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.
El País, 19/12/2018

Quando o maior inimigo são os aliados (Fernando Abrucio)

Terminada a fase de montagem do ministério, constata-se que o futuro governo vai abrigar diversos grupos e ideias diferentes. Até certo ponto isso é natural, porque governar um país tão heterogêneo como o Brasil significa abrir espaços para várias correntes políticas e sociais. Mas as contradições e ambiguidades que aparecem no discurso dos aliados e em seus interesses não serão facilmente arbitrados pelo presidente eleito. Ao contrário, pode ser que aqueles que hoje estão de mãos dadas com Bolsonaro se tornem sua maior dor de cabeça na lua de mel presidencial.
Geralmente se pensa que o maior adversário de um governo eleito é a oposição derrotada nas urnas. No caso brasileiro, nem sempre isso é verdadeiro, porque há dois vetores de dispersão do poder: a fragmentação do Congresso Nacional, que vem crescendo na última década, e a pluralidade de partidos que elegeram governadores de Estados. No momento atual, a principal oposição é o PT, que tem força importante nas governadorias do Nordeste, mas está longe de ter força institucional para ser um obstáculo ao Executivo federal.
A chance de o PT barrar propostas e projetos do governo Bolsonaro está em se aliar a outras legendas partidárias. E isso não será tão fácil por duas razões. A primeira é que os partidos querem ter uma relação diferente com o petismo, pois temem ser hegemonizados ou, pior, receber respingos do antipetismo e perder votos nas próximas eleições. Em segundo lugar, a situação é de crise de todo o núcleo anterior do sistema partidário, gerando, pelo menos no curto prazo, uma fragilidade em todas as agremiações.
Vale lembrar que, na época do governo FHC, o PT ainda tinha muito mais força nos grupos organizados da sociedade civil, o que lhe conferia um poder de fogo importante no jogo contra o governismo. Atualmente, essa capacidade de aglutinação e apoio social reduziu-se sensivelmente. Vários fatores podem explicar esse fenômeno: mudanças econômicas e demográficas, decepções com o petismo e agora a reforma trabalhista, entre outros, enfraqueceram o suporte do Partido dos Trabalhadores. De todo modo, o PT terá que se voltar novamente às bases do eleitorado para se reconstruir. Mano Brown estava certo.
As outras legendas estão em situação ainda pior, em particular o centro do sistema político, que perdeu votos, cadeiras e rumo. Esperar que a oposição se organize a partir desse grupo é, no curto prazo, pouco provável. Há outros potenciais adversários do presidente Bolsonaro, como os sindicatos (enfraquecidos pela reforma trabalhista), universidades, movimentos sociais, ONGs e até empresários, pois o ministro Paulo Guedes aparentemente quer fazer reformas para mexer com os capitalistas do país, como no caso da mudança do Sistema S.
Todos eles deverão fazer algum barulho e poderão crescer com os erros do governo. Mas, por ora, seu poderio é disperso e não tem a capacidade de paralisar a gestão do presidente Bolsonaro.
Claro que se a lua de mel presidencial for mais curta, as potenciais forças contrárias poderão se agregar numa dinâmica maior, inclusive se aliando aos partidos políticos. Neste sentido, o desafio político maior do novo governo será manter, pelo maior prazo possível, o período de graça junto ao eleitorado. Para alcançar esse objetivo, os aliados devem jogar juntos, transformando-se num time entrosado em termos de ideias e estratégias. Só que os primeiros passos foram mais atribulados do que ensaiados.
O fato é que, mesmo tendo feito escolhas muito independentes em relação aos partidos, o presidente Bolsonaro montou um governo em que há ambiguidades e contradições fortes, além de ter uma base de apoio complexa e inexperiente no jogo político governista. Analisando os dois meses pós-eleição, é possível identificar pelo menos sete grupos disputando o poder nessa primeira fase governamental, embora haja interseções entre eles.
O primeiro é o da família Bolsonaro. Os três filhos têm muita congruência de ideias com o restante do governo, mas têm um estilo peculiar e se constituem, efetivamente, como um grupo que busca influenciar o poder. Foram eles que escolheram os ministros das Relações Exteriores e da Educação, e não grupos religiosos e nem o guru Olavo de Carvalho. Óbvio que construíram legitimações externas, mas são ministérios de sua cota, e logo dois com grande peso na Esplanada. A visão "neocon" que defendem é menos pragmática do que a de outros grupos, porém, ela tem o poder de mobilizar a base mais fiel do bolsonarismo e, o mais importante, de encantar o presidente.
Os militares constituem um segundo grupo dentro do novo governo. Mesmo que Bolsonaro tenha formação militar, ele não se coloca por completo nessa categoria, pois é, acima de tudo, um político de carreira (mesmo que com um discurso de "outsider") e um líder popular. Além disso, os membros de alta patente desse grupo tiveram uma socialização política diferente nos últimos anos, com experiências importantes no plano internacional, que geraram um arsenal de ideias mais pragmático e profissionalizado sobre o que devem ser as políticas públicas quando comparadas às visões dos filhos do presidente. Claro que há semelhanças de pensamento e, sobretudo, um enorme respeito que Bolsonaro nutre pelos seus ex-colegas de caserna. Mas há discordâncias de estilo e da forma como os integrantes das Forças Armadas veem o que seria o lado populista do presidente eleito. Não se espera, de início, grandes divergências aqui, mas esse grupo será um ponto de equilíbrio nas decisões mais difíceis e, principalmente, nos momentos de crise.
Paulo Guedes e sua equipe compõem um terceiro grupo, que ganhou uma enorme importância porque o sucesso inicial do presidente Bolsonaro dependerá muito dos rumos da economia e da capacidade de fazer as reformas, muitas amargas, no Congresso Nacional. Guedes não é superministro apenas pelo fato de ter conquistado boa parte da máquina governamental para si. Sua força estará muito mais em ser o "lado moderno" do governo, aquele que pode fazer o diálogo com o mundo, com as finanças e com todos os fatores de poder que não estão na agenda populista. Ele é o globalista, num governo em que gente forte odeia isso.
O principal "posto Ipiranga" de Bolsonaro, com toda a autonomia que lhe foi conferida, terá dificuldades com outras agendas e grupos presentes no governo. Problemas na política ambiental podem afugentar uma parcela do capital internacional que é fundamental para o processo de privatizações. Do mesmo modo, a venda de alguns produtos pode sofrer com ações da política externa, como a mudança da capital de Israel para Jerusalém. E ninguém sabe, ao fim e ao cabo, se todo o bolsonarismo congressual votará por reformas como a da Previdência.
O quarto grupo é o núcleo de Sérgio Moro, que é composto não só por sua figura emblemática, mas principalmente por um conjunto de burocratas vinculados ao sistema de controles, que se fortaleceu muito nos últimos anos e, seguramente, têm um projeto de poder. A purificação do sistema político pela via do combate à corrupção já teve efeitos no processo político recente. Mas agora Moro é o ministro, o homem da situação, e não apenas um soldado a serviço do Estado impessoal. Todos os aliados que cometerem algum deslize terão de se ver com o novo ministro. Haverá alguém inimputável? A pergunta já pode ser feita para um dos filhos de Bolsonaro e, por ora, Moro mantém um silêncio ensurdecedor.
Mas Moro também terá de cuidar de outros assuntos, principalmente da Segurança Pública. Eis aí uma política pública de difícil resolução no curto prazo, qualquer que seja o ministro ou o governante. A não resolução desse assunto ou, pior, algum episódio mais forte, como a morte de inocentes na Rocinha ou de sem-terra, pode afetar a imagem e o poderio desse grupo.
Os três últimos grupos estão na esfera política propriamente dita. O primeiro são os antigos aliados políticos de Bolsonaro, que perpassam alguns partidos, e cujo principal representante é o ministro Onyx Lorenzoni. O outro é o PSL, partido do presidente e com vários componentes que adotaram uma postura eleitoral muito parecida com a do Bolsonaro candidato. Em geral, são barulhentos e inexperientes no jogo político brasiliense. E, por fim, há as frentes parlamentares, especialmente a ruralista, a evangélica e a da bala. Tal grupo tem intersecções com os dois anteriores, mas seu maior número de parlamentares os diferencia, comportando políticos que sabemos como votam em um assunto, e desconhecemos como farão nos demais.
Há muitas chances de o presidente Bolsonaro conseguir montar uma base politica estável na Câmara, embora tenha mais dificuldades para fazê-lo no Senado, onde a classe política tradicional poderá se unir com entrantes não bolsonaristas. De todo modo, o maior problema aqui estará em juntar os três grupos políticos do bolsonarismo, pois as conversas de Whatsapp e nos restaurantes de Brasília à noite mostram que a briga de poder no governismo será ferrenha. Isso pode custar a perda da presidência de ambas as Casas do Congresso.
O principal papel de Bolsonaro será o de atuar como árbitro desses grupos. Do sucesso dessa empreitada dependerá o tamanho de sua lua de mel. Feliz Natal e excelente 2019 para todos nós.
Valor Econômico/ 21 de dezembro de 2018

Consumidor insurgente (José de Souza Martins)

A nova e confusa direita brasileira alimenta seus antagonismos e combates contrapondo-se a inimigos ideológicos velhos de mais de meio século. Enquanto se prepara para governar em nome de concepções políticas ultrapassadas, fora de seus domínios surgem novas e sutis formas de compreensão das contradições e antagonismos sociais. As sociedades mudam mesmo depois de mudar. Outras formas de ação política emergem.
São fortes os indícios de que o novo sujeito social das tensões e enfrentamentos políticos já não é nem mesmo a rua, cujo potencial pode ter se esgotado nas manifestações antipetistas que ganharam corpo a partir de 2013. As eleições de 2018 podem ter posto fim à eficácia desse tipo de luta política.
O novo sujeito da ação emerge, no mundo neoliberal, da indignação moral da aparentemente irrelevante figura do consumidor, uma variante dos que se expressaram nas ruas e nas redes sociais. É aquela que sob a passividade anestesiante da sociedade de consumo não se rende à desumanização e à coisificação que decorrem do primado da mercadoria e do dinheiro na vida do homem comum e moderno. Uma insurreição silenciosa vai se esboçando.
A atenção popular vê coisas que economistas, empresários e empresas não veem. Caso recente foi o da cachorrinha violentamente morta pelo segurança de um supermercado, de Osasco, de famosa rede internacional. Tudo motivado pela subserviente "limpeza de área" em virtude da próxima visita de diretores da empresa.
Nos protestos à porta do estabelecimento e em manifestações similares diante de outros estabelecimentos da rede, em outros pontos do país, ficou evidente que a relação entre o cliente e a empresa é bem diferente da relação entre a empresa e o cliente. O que não tem sentido para aquela tem sentido para este. O que para aquela se esgota no ato puramente econômico e lucrativo da venda de um produto, para este se desdobra para além da mera compra e ganha sentido na própria circunstância da relação de compra e venda.
Ao comprar o cliente não se vende. Espera de quem lhe vende a reciprocidade moral própria de uma relação que para ele não é mera relação econômica, mas sobretudo relação social. O que é um ato racional para quem vende, para quem compra o ato está sujeito a crítica social em decorrência das irracionalidades que contém. As que não são percebidas nem previstas por quem reduz a compreensão da relação de venda e compra ao afã do ganhar sem atenção às circunstâncias invisíveis, sociais, do ganho.
Estamos em face do que o historiador inglês Edward P. Thompson definiu como "economia moral". A Revolução Francesa começou assim, um protesto contra o preço do pão, e rapidamente aglutinou outras inquietações, sociais e filosóficas. Mesmo a França de agora treme sem saber o porquê.
O caso da cachorrinha é apenas um indício de anomalias que ganham sentido na nova circunstância política. Outro foi o do caso noticiado do empresário que impôs a seus funcionários que perfilhassem a candidatura da direita, que acabaria vencedora. Um episódio de violência neoclientelista, que entre nós representa retrocesso às concepções políticas da chamada República Velha, quando não havia diferença entre gado e gente, como diz o poeta. Há enorme diferença histórica, que muitos não percebem, entre empresário e capataz ou feitor.
O que foi a decisiva marca da dominação política retrógrada, antirrepublicana e antidemocrática, do clientelismo sertanejo, dos ermos e grotões, renasceu agora em setores supostamente modernos da economia brasileira. Em conexão com os abusos e em reação a eles, começaram a circular nas redes sociais listas de empresas que estavam apoiando os que personificam o nosso novo autoritarismo.
Nas entrelinhas da violência política, começou a surgir um movimento de busca de novos meios de seu enfrentamento em direção ao boicote a produtos e empresas. Pode não ter sido algo puramente tópico e ocasional. É possível que um novo modo político de atuar esteja em gestação, tendo como referência uma personagem característica da sociedade de mercado e de consumo, que é o consumidor.
Forçada a consumir ideologias partidárias impostas a seus trabalhadores pelos fabricantes dos produtos que consomem, essa nova personagem do processo político não terá como se defender. A não ser impondo às empresas equivocadas a reação de uma atitude ideológica e politicamente seletiva em relação aos produtos que chegam ao mercado indevidamente contaminados por uma atitude pouco empresarial e muito reacionária. Está se esboçando um retorno à prática moral do boicote aos produtos das empresas que se sentem acima da premissa democrática da igualdade e da liberdade de consciência.
Valor Econômico/21 de dezembro de 2018

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Política e religião (José de Souza Martins)

As eleições de 2018 foram realizadas num cenário de utilização extensa de instrumentos extrapolíticos para domar a consciência do eleitorado e dela extrair a cooptação e a rendição eleitoral. Foi o caso da religião, os púlpitos usados como instrumentos de transformação do voto consciente, livre e democrático em voto de cabresto. Não só a democracia foi comprometida, e o teria sido qualquer que fosse o vitorioso, como a própria política foi mutilada.
Já no declínio do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva, em conferência da Escola Superior de Guerra, explicou aos presentes o que era a política da abertura lenta, gradual e segura. Ela culminaria com a devolução do poder aos civis e aos partidos políticos que dela se originariam para expressar a diversidade ideológica da sociedade brasileira.
Reconhecido especialista em geopolítica, era dos raros militares brasileiros que sabiam que a mudança do regime em 1964 tinha muito pouco a ver com uma reação ao comunismo e muito mais a ver com a questão do alinhamento do Brasil no cenário da Guerra Fria.
As esquerdas levavam o país para o "lado errado", o do bloco soviético. O bloco "certo" era o da hegemonia americana. Nessa polarização havia razões de mercado e razões de segurança nacional. Mas Golbery se enganava ao supor que as esquerdas eram uma esquerda só, a da hegemonia dos comunistas russos. Aqui, as esquerdas estavam fragmentadas, eram críticas dos soviéticos e devoravam-se entre si, como acontece até hoje.
Nessa perspectiva, ele havia constatado o fato novo de que religiões estavam se envolvendo na política brasileira e apossando-se de nosso imaginário político. Supostamente, alinhando-se às esquerdas. Portanto, estavam anulando o que é próprio da política. A chamada abertura tinha por propósito principal, em suas palavras, devolver a política ao seu leito natural, aos partidos.
A República proclamada pelos militares, em 1889, propôs-se a eliminar os vestígios do Antigo Regime, dentre eles o caráter oficial da religião católica. Já antes da promulgação da Constituição de 1891, um decreto de Deodoro antecipava essa separação. O Brasil deixava de ter religião oficial, o Estado não se meteria nas questões religiosas e as religiões não se meteriam nas questões de Estado. Cem anos depois da Revolução Francesa, a moderna civilização política chegava ao país.
A decisão não só libertava o Estado do influxo das crenças, mas libertava a Igreja Católica da manipulação do Estado para propósitos em tudo divorciados dos assuntos propriamente religiosos. As outras religiões, chamadas então de acatólicas, também ficavam protegidas contra as diabólicas tentações do poder.
Com a República, religião passou a ser assunto privado e pessoal, assunto de foro íntimo. Na verdade, uma moderna concepção protestante da fé. No afã de poder, os protestantes e evangélicos, que foram decisivos para aqui fundar a República, vem se tornando os principais inimigos do republicanismo brasileiro. Tentam se apossar das instituições do Estado e a definir orientações de fundo religioso para questões políticas.
Cultos e cerimônias religiosas têm sido celebrados em recintos oficiais, como o Congresso Nacional. Câmaras municipais têm tornado obrigatória a leitura da Bíblia em suas sessões. Ferem o princípio democrático da pluralidade religiosa.
A República laica foi testada logo depois de sua proclamação. O Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor da Igreja Evangélica Brasileira, militar, abolicionista, republicano, doutor em ciências matemáticas e físicas, engenheiro, convocado em 1891 para compor o corpo do júri pela Justiça do Rio de Janeiro, pediu que, em respeito às novas leis, fosse removido da sala das sessões o crucifixo que ali havia.
Nascia a chamada questão do "Cristo no júri", que se arrastaria por anos. O caso foi parar na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados e lá recebeu parecer de Quintino Bocaiúva, republicano exaltado, que estava ao lado de Deodoro na manhã da proclamação da República.
Tergiversou ele e situou o alcance da separação entre Estado e igreja: religião é assunto pessoal e subjetivo, sua prática e não seus símbolos. A atitude protestante desencadeou extensa reação nacional, com procissões e entronizações da imagem de Cristo crucificado nos tribunais.
O presidente agora eleito vacila e oscila em face de seu débito eleitoral para com os púlpitos, sobretudo os neopentecostais. Dá demonstrações de que resiste ao assédio ao traduzi-lo nos termos de outra lógica de poder, a sua, que ainda pede desvendamento. Lógica restritiva e antipluralista, de medo à democracia da diferença, que não é apenas verde, mas verde e amarela.
Valor Econômico/7 de dezembro de 2018

A política familiar (Fernando Limongi)

O dia da família, 8 de dezembro, não foi comemorado pelos Bolsonaro. A efeméride não gerou as esperadas mensagens na rede social, talvez porque os negócios da família, suas amizades e dívidas, tenham ocupado o noticiário. Cheques depositados na conta da futura primeira dama precisaram ser explicados e, como de costume, contabilizados como dívidas pessoais de um velho amigo que se perdeu pelo caminho.
Não é de hoje que os negócios dos amigos e dos familiares são fontes de embaraço para políticos. O enredo é conhecido e se repetiu vezes sem conta.As iniciativas do filho de Lula que ocuparam o noticiário durante a semana estão aí para comprovar. Há sempre um empresário a postos para bancar a aventura em troca das oportunidades que a proximidade com o poder gera.
Magno Malta, o puxador oficial das preces presidenciais, não chegou a ministro porque, para usar a expressão cunhada por Jacques Wagner, começou a se lambuzar com as sinecuras do poder antes mesmo de ocupar o cargo. A generosidade do empresário Eraí Maggi para com Malta, cedendo aeronaves para facilitar deslocamentos do candidato, não foi interpretada como um ato de comprometimento com a defesa da família, da pátria e dos bons costumes. A dupla Malta e Eraí já dava como certo até que emplacariam Adilton Sachetti no Ministério da Agricultura. Malta não resistiu ao escrutínio dos lotados na equipe de transição. Aparentemente, outros tantos aliados de primeira hora não obtiveram o aval da equipe por razões similares. Eraí Maggi, com certeza, não foi o único a investir recursos para usufruir da intimidade do novo núcleo do poder.
Obviamente, políticos e membros da 'entourage' presidencial não se distinguem dos lotados nos demais poderes. Não por acaso, o Conselho Nacional de Praticagem (CONAPRA) se lembrou de incluir os Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio entre os convidados a participar do seminário que promoveu em Búzios, no Ferradura Resort. Entre os palestrantes, destacou-se Rodrigo Fux, filho do ministro Luiz Fux, que representa a CONAPRA em causa a ser julgada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ao explicar o papel do prático, o Ministro Marco Aurélio evidenciou porque sua presença era imprescindível: "É um verdadeiro comandante. Ele assume o navio para a entrada no porto. Ele que conhece os aspectos alusivos ao porto, inclusive os canais existentes."
Flávio Bolsonaro, entrevistado pela GloboNews na última terça-feira, comportou-se como um experimentado comandante-prático e expôs com desenvoltura e serenidade os projetos do novo governo. Um desavisado poderia pensar que o senador eleito decidira se filiar à Rede, tantas foram as referências à morte da velha política e à aurora de uma nova era, sob a liderança de Jair. "A forma de fazer política mudou", decretou.
Didático, associou todos os problemas do governo passados à distribuição de pastas ministeriais a partidos: "Se você tem um governo que não tem o loteamento em base de partidos... e isso significa o quê? Que todos os ministérios podem se comunicar, sem se preocupar se está [sic] invadindo o terreno eleitoral de um ou de outro. Um parlamentar que seja de um partido, PX, pode procurar qualquer ministro para levar demandas legítimas para seu estado, para aquele segmento que ele representa, sem se preocupar 'Bom, eu sou do PX, então partido que está no Ministério tal é do PY, então eu não vou ter acesso, não!' Vai ter acesso!"
Eraí Maggi e a CONAPRA sabem que as coisas não são assim tão simples, a começar pelo fato de que recursos são escassos e, portanto, insuficientes para atender todas as demandas. Eraí e a CONAPRA sabem também que a distinção entre os pleitos legítimos e ilegítimos não é uma operação simples e objetiva. Os pleitos dos amigos acabam sendo vistos com mais simpatia que os dos mais distantes, isto sem falar nos apresentados pelos inimigos. Por exemplo, na sua exposição, Flávio Bolsonaro deixou claro que acredita que as demandas apresentadas pelo PT serão rotuladas como ilegítimas.
Paulo Marinho, suplente de Flávio de Bolsonaro no senado, sabe como ninguém a importância das conexões políticas para os negócios. Segundo a Revista Crusoé, o empresário sempre esteve "perto de onde há poder e dinheiro" e, em tom de denúncia, alerta que "já foi próximo até dos petistas."
O faro político do empresário o levou a apostar suas fichas na candidatura dos Bolsonaro, franqueando sua casa para gravações e reuniões políticas, durante e depois da eleição. Nesta aproximação, valeu-se da amizade de Gustavo Bebianno, velho conhecido dos tempos em que trabalhou no escritório Sérgio Bermudes. O advogado é outro bom amigo de Paulo Marinho, na casa de quem se casou, em cerimônia celebrada por ninguém menos que Luiz Fux.
Em razão da sua extensa biografia, Marinho é cotado como o candidato mais forte e natural ao posto de lobista geral do novo governo. Pelas mesmas razões, é visto como fonte segura de problemas futuros para a família Bolsonaro. A amizade pede reciprocidade.
Os problemas, contudo, chegaram bem antes do esperado e vieram do núcleo familiar do próprio presidente. Os amigos íntimos e de velha data não são tão fáceis de descartar, sobretudo quando trazem consigo marcas indeléveis, como fotos, cheques e a alocação de parentes em gabinetes. As movimentações financeiras de Fabrício de Queiroz, assim como o trânsito das filhas dos motoristas pelos gabinetes de Jair, Flávio e Cláudio mostram que o clã Bolsonaro reza pelo velho e tradicional evangelho da política brasileira.
Onyx Lorenzoni, outro que se viu enredado por práticas políticas que Bolsonaro diz ter vindo para enterrar, socorreu-se de um esquema infantil para traçar a rota de fuga: "Não dá para querer achar que [o governo] é igual ao do PT. Não é, nunca vai ser e os homens e mulheres que estão aqui são do bem. A turma do mal está do lado de lá."
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.
Valor Econômico/10 de dezembro de 2018