quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A eleição do desencontro, ou da importância do voto nem-nem (Sérgio Abranches)

Mais do que desencanto, o que marcou as eleições municipais de 2016, foi o desencontro entre o eleitor e a política. A eleição de candidatos que fizeram campanhas se dizendo “estrangeiros” na política, como Dória, em São Paulo, com o carimbo de “gestor” ao lado das grifes que usava, mostrava a busca de novas lideranças para oxigenar a política, tornar a gestão pública mais eficiente e mais transparente. Não foi uma eleição de “apolíticos”, coisa que não existe. Mas de novidades na política.
O desencanto é fenômeno global. Em todas as democracias do mundo, os cidadãos, especialmente os mais jovens, têm mostrado esse desencanto, esse fastio com a “velha” política das oligarquias partidárias, de lideranças e partidos que representam sua própria fatia de poder, seus financiadores e pequenos grupos aos quais são ligados. Sem falar na corrupção, no elitismo, na teimosia em promover velhas ideias e conceitos superados, alheios à agenda do século XXI. Nessas eleições, o que menos se ouviu nas campanhas de todos os candidatos foram propostas para tornar suas cidades inteligentes, sustentáveis, humanas e pacíficas.
Não diria, por tudo isso, que o segundo turno reforçou a tese de que essas foram as eleições do desencanto, por causa da quantidade de abstenções, votos nulos e brancos. O contexto socioeconômico dessas eleições é muito negativo. Profunda crise econômica, fruto dos erros seriais do governo de Dilma Rousseff — os erros, de fato, começaram na segunda metade do último governo Lula — e dos governos estaduais e municipais. No Rio, a miragem do pré-sal fez todos gastarem por conta e mal. Não falo da gastança em si — nem da corrupção deslavada — falo do mau gasto, das prioridades longe da pauta da sociedade e aquém dos desafios do século XXI. Gastaram em um plano de investimos do século XIX, e conscientemente. Subsidiaram pesadamente os ricos e as grandes corporações — com o uso abusivo do Banco do Brasil, da Caixa e do BNDES — deixando a conta para a população assalariada e desempregada pagar. Difícil escolher candidatos para a cidade, em um ambiente desses, principalmente se nenhum deles mostrou entender os problemas herdados e as necessidades do novo tempo. Junte-se a tudo isso uma investigação que revela vastas redes de corrupção, alcançando lideranças de praticamente todos os partidos. É um ambiente pouco propício ao voto em alguém.
A soma de ausências, nulos e brancos sobre o total de eleitores, ficou na casa dos 30% a 35%, em 12 das capitais one houve segundo turno. As abstenções giraram em torno de 20% a 25%, um pouco mais altas que nas eleições passadas, mas nada que justifique espanto ou alertas especiais. Usando as capitais como referência, só no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, abstenções, nulos e brancos ficaram acima de 40%: 46,93% no Rio, 43,14%, em Belo Horizonte e 44,29% em Porto Alegre. Portanto, na maioria absoluta das capitais, esse percentual ficou num plano bem mais moderado, ainda que acima da média das eleições anteriores. Mesmo os números do Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre são menores do que os que se costuma observar nas eleições dos Estados Unidos e da Europa, onde taxas de 50% ou mais não são incomuns. Mas esse um terço de eleitores que escolheram não escolher candidatos está causando celeuma. Tem analista defendendo o voto obrigatório, para evitar que os que não apontam candidatos. Em várias eleições e muitos referendos nas democracias dos países do topo da pirâmide de desenvolvimento, há numerosos casos de 60%-65% de alienação eleitoral. Os eleitores não se vêm representados naquela disputa e preferem ficar de fora. Nos Estados Unidos, que votarão para presidente daqui a sete dias, Hillary Clinton e Donald Trump estão focalizando suas mensagens finais em mensagens para motivar os eleitores a votar. O voto voluntário obriga os candidatos a se aproximarem mais da pauta dos eleitores, porque podem ser derrotados pela abstenção.
Também não acho adequado denominar a abstenção de “não-voto”. Novidade sem sentido. Abstenção sempre foi abstenção e é uma decisão consciente, a menos que a ausência seja por força maior. Menos apropriado ainda é chamar o conjunto ausência, brancos e nulos, como “não voto”. Nulos e brancos são, tecnicamente, e de direto votos: são registrados na urna eletrônica e são computados. Até fisicamente votar nulo e branco corresponde ao ato de votar: sair de casa, ir até a seção eleitoral, apresentar os documentos, votar, assinar e sair. Dão o mesmo trabalho para o eleitor, o jargão diria que o “custo de oportunidade” é o mesmo. Todos são atos de escolha: votar ou não, votar nesse ou naquele candidato, branco ou nulo. O branco tem até tecla específica. O nulo pode acontecer por erro ou por escolha consciente. Imaginemos que o erro seja igual à média histórica dos nulos, dá em torno de 2%-3%, então se houve 10%-15% de nulos, pode-se imaginar que entre 8% e 13% decidiram anular mesmo o voto. Não votaram errado. Não se pode afirmar que foi um voto de protesto, porque não há evidência para isso. Na ditadura militar, quando se usava cédula o protesto era computável: escreviam “abaixo a ditadura”, “socialismo ou morte”, palavrões. E os votos por erro era identificáveis. Agora o que temos é um total opaco. No máximo se pode dizer que esse excedente da média de erro é um voto “nem-nem”. “Nem um, nem outro candidato”. Prefiro chamar esse conjunto de negação. A taxa de negação significa que, em média, um terço dos eleitores se recusaram a votar em qualquer um dos candidatos, por não se sentirem representados por eles, nem por eles terem simpatia. É o contrário do chamado “voto útil”, pelo qual o eleitor troca o candidato de sua real preferência por um menos pior que tem mais chance de ganhar. Prefiro a sinceridade do nem-nem ao pragmatismo da utilidade do voto.
Quando examino o caso dos percentuais acima de 40%, do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e de Porto Alegre, não vejo fenômeno novo. Vejo a velha política cometendo erros e desconsiderando a pauta da sociedade, na escolha dos candidatos e na costura das alianças. É um enredo para atravessar as demandas dos eleitores.
Em Belo Horizonte, 11 candidatos disputaram o primeiro turno, mas apenas 4 eram competitivos. O prefeito de BH, ficou fora da disputa, embora pudesse ser uma força decisiva, porque o PSDB de Aécio Neves não quis coligar-se com ele. Ganhou, o candidato apoiado por uma coligação de nanicos, mostrando a falta de credibilidade dos grandes partidos. Isso sem falar que parecia uma disputa pela direção do Atlético Mineiro, entre duas facções do mesmo clube. O PSDB ainda disputou o segundo turno, mas com um candidato desacreditado e controverso. O PMDB teve 10% dos votos no primeiro turno. O PT teve 7%, após uma vitória substantiva para o governo do estado. Mas, agora, o governador petista está envolvido até o cabelo nas investigações de corrupção.
Em Porto Alegre, 12 candidatos disputaram o primeiro turno. Somente 5 eram de fato competitivos. Ganhou o candidato do PSDB, que há muito disputa com o PMDB a posição de partido dominante ao centro. Pela esquerda, o PT havia deslocado o PDT da posição de partido dominante. Nesta eleição, o PT ficou em terceiro, no primeiro turno, com votação bem distante da do segundo colocado. O PDT estava na coligação do candidato do PMDB, Sebastião Melo, junto com outros 11 partidos, entre eles o DEM e o PSD e vários nanicos. Na coligação de Nelson Marchezan Filho, eleito prefeito pelo PSDB, estavam partidos nanicos e o PP, puxando a candidatura para a centro-direita. Uma montoeira inorgânica de partidos nas duas coligações, sem configuração ideológica ou programática clara. Isso, em uma cidade que sempre foi politizada, polarizada e onde a população sempre teve um lado claro, pode muito bem justificar a rejeição a todos os candidatos e a opção pelo voto nem-nem.
No Rio de Janeiro, o voto nem-nem chegou a 20%, foi metade da votação de Freixo, e somado às abstenções, superou a marca do candidato do PSOL: 46,9% contra 40,6%. Se calculamos os votos dos candidatos sobre o total de votos, incluindo brancos e nulos, Crivella foi eleito com 47,45% e não 59,36%. Vou dizer de outra forma: de todos os que votaram, 47,45% votaram em Crivella; 32,5% votaram em Freixo, 18,26% votaram nulo e branco e 24,28% não compareceram. No primeiro turno, foram 11 candidatos, mas seis competitivos. A situação, representada pelo PMDB de Eduardo Paes, que tinha vários atributos que poderiam tornar seu candidato competitivo: as mudanças na paisagem urbana do Rio, melhorias na mobilidade, com o metrô e o VLT, as Olimpíadas, tinha um candidato isolado e controvertido, que o prefeito impôs contra tudo e contra todos. Erro grave de estratégia política. A não ser que Eduardo Paes quisesse perder, para que sua gestão pareça muito melhor do que foi, após a administração provavelmente medíocre do bispo Crivella. Além disso, o PSDB concorreu com um ex-secretário de Paes. As duas candidaturas nitidamente dividiram o voto no primeiro turno. Se considerarmos que Pedro Paulo, Osorio e Índio da Costa representavam o mesmo campo político-administrativo, somando 33,73% dos votos, entende-se porque essa fragmentação do campo no centro abriu a porta do segundo turno para Freixo e Crivella, um com 27,78% dos votos e o outro com 18,26%. A esquerda há muito tempo não é competitiva na disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro, uma desvantagem que Freixo não teve credibilidade, nem talento para vencer. Crivella nunca foi o favorito da maioria, nem esbanjou credibilidade. Foi eleito por eliminação, por ser o menos pior, o mais de direita e ter o voto de boa parte dos evangélicos. Tudo somado, não dá um prefeito representativo, nem dos interesses, nem do espírito dos cariocas. Os erros políticos de Paes e a divisão ao centro, explicam o resultado e o desencanto dos eleitores que não se sentiam representados, nem tinham particular apreço pelos dois candidatos, daí os 47% de alienação eleitoral.
Sou favorável, pelo que disse acima, ao fim da obrigatoriedade do voto. Mais ainda, é uma contradição não tomar como válidos os votos brancos e nulos, para determinar o percentual dos candidatos. Crivella, por exemplo, teria que ter convencido o equivalente a mais 4% do eleitorado a votar nele para vencer. Sou a favor de tudo que dificulte a eleição: cálculos mais exigentes para o quociente partidário nas eleições proporcionais; incluir os brancos e nulos no denominador da fórmula para calcular os percentuais dos candidatos nas majoritárias; cláusula de barreira. Quanto mais difícil for se eleger, mais os candidatos serão forçados a se aproximar da pauta dos eleitores.

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